segunda-feira, 8 de março de 2021

BOLSONARO E O NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO



O último episódio no qual o presidente da república novamente diz que as preocupações com a pandemia são um "mimimi" é um dos principais reflexos da debilidade moral de nosso tempo. Algo que tem passado despercebido nas discussões atuais sobre a conjuntura brasileira é que Jair Bolsonaro, ao defender este tipo de discurso, tem atuado como o principal porta voz do novo capitalismo no Brasil. 
Nos anos de 1990, a hoje clássica análise de Luc Boltanski e Eve Chiapello em seu livro "O novo espírito do capitalismo" se colocou como uma das principais interpretações do capitalismo contemporâneo. Seguindo a melhor tradição de clássicos como Weber e Sombart, os autores priorizaram a preocupação com o espírito do capitalismo, ou seja, todo o conjunto de ideias e ações que lhe atribuem significado em cada tempo histórico. 
Usando o conceito de ideologia de Louis Dumont, eles percebem esta não como uma falsa consciência, no sentido marxista, mas sim como um conjunto de representações, referente às necessidades específicas de reprodução da dominação social em cada período específico do capitalismo. Tais representações precisam angariar corações e mentes das pessoas, de modo que o sistema possa continuar a existir em toda a sua perversidade, apesar de termos ampla consciência de sua desigualdade na esfera pública. 
Com isso, o capitalismo atual, tematizado pelo livro como sendo perpassado pelo "terceiro espírito do capitalismo", não depende mais do discurso da ética protestante, como em seus primórdios, de acordo com a bela e clássica interpretação de Max Weber. Para os autores, o primeiro espírito do capitalismo é aquele do aventureiro, como tematizado por Weber e Sombart, e se remete aos primórdios do capitalismo moderno, nos séculos XVII e XVIII, que dependia da ideologia da disciplina protestante para sua sustentação moral. O segundo espírito é aquele que se conforma já no final do século XIX, com o surgimento das grandes corporações e a separação profissional entre propriedade e gerência, no qual a figura dos executivos e o papel social das empresas ganha proeminência. 
No terceiro espírito, que se conforma a partir da década de 1970, o capitalismo precisa responder à inúmeras críticas sociais e estéticas, como belamente definem Boltanski e Chiapello, o que o leva a buscar esconder as figuras de autoridade e hierarquia. O executivo engravatado é agora substituído pela figura do líder camarada e despojado, que vai ajudar os seus colaboradores a vencerem juntos, no novo formato empresarial flexível que os autores definem como "cidades por projetos". Agora, basta você vestir a camisa da empresa, desenvolver uma personalidade flexível e pronto, a felicidade está acessível, com promessa de bons salários e consumo. 
O que Jair Bolsonaro tem a ver com tudo isso? Neste cenário atual, o capitalismo precisa mais do que nunca engajar todas as classes sociais na reprodução de uma sociedade tão desigual e tão brutal. O contexto de crise estrutural global do capitalismo não é novo, e nos remete aos anos de 1970, o que é consenso para vários analistas sérios como Robert Castel, Ulrich Beck, Nancy Fraser, além de Boltanski e Chiapello e também economistas como Wolfgang Streeck e Thomas Piketty. Todos eles percebem no fim do Welfare state europeu e americano o início de um novo tempo de precarização global do capitalismo e que podemos também definir como o início de um processo irreversível de institucionalização da indignidade do trabalho. Desde então, o fosso entre a elite e as demais classes sociais, inclusive a classe média alta, tem aumentado em escala global.
Dentro deste cenário maior, a crise financeira de 2008 apenas aprofunda a situação, e especialmente nos países periféricos. No Brasil, a conta já chega no governo Dilma Rousseff, se aprofundando no segundo mandato e levada adiante com a perversa dobradinha Temer-Bolsonaro. Temos como resultado um golpe de estado e uma reforma trabalhista que apenas chancela todo este processo global e sua especificidade acelerada nos últimos anos no Brasil, criando o que eu sugiro definirmos como uma "dupla precariedade do trabalho", estrutural e conjuntural ao mesmo tempo, considerando nossa precariedade histórica e nosso cenário político atual perverso. 
Com tudo isso, se voltarmos à fina teoria do capitalismo de Boltanski e Chiapello, compreenderemos que este novo capitalismo precisa de um porta voz que garanta os engajamentos, mesmo em cenário aparentemente injustificável sob qualquer ponto de vista. Quando Bolsonaro cria uma falsa oposição entre a vida econômica e a vida moral da população, ao priorizar a questão do trabalho (ficticiamente, é claro!) em detrimento da questão da saúde, ele está buscando exatamente o engajamento da grande maioria da população brasileira afundada no trabalho precário e indigno. Com isso, o presidente deixa de ser um chefe de estado e passa a ser um "relações públicas" do mercado. Nada mais do que isso. Essa é a verdadeira função de Jair Bolsonaro: engajar a população oprimida do Brasil em um sistema de trabalho global que está aumentando sua perversidade em velocidade preocupante. 
Quando ele diz, por exemplo, que o brasileiro é corajoso ao ir pra rua trabalhar e não usar máscara, que o povo precisa trabalhar, que é uma gripezinha, etc, ele está perversamente, e vale aqui repetir com ênfase esta palavra, obrigando o povo a ir pra rua, de modo que o sistema não pare, pois este não pode abrir mão do trabalho braçal da massa, enquanto a classe média e a elite, especialmente agora na pandemia, continuam cada vez mais trancados em casa, no trabalho remoto e expostos à insanidade mental. Quando o relações públicas diz que a economia não pode parar, ele está sendo não o executivo do estado, mas o executivo do mercado. No passado o capataz usava um chicote, hoje, usa um smartphone. Não por acaso, o presidente é lider das redes sociais. Inclusive, o nível de instrumentalidade do sistema e tanto, que o próprio presidente, como pessoa, é um objeto, exposto sem máscara às multidões e representando todo o negacionismo perfeitamente encarnado em sua própria imagem. 

Como solução, precisamos ter alguma esperança para 2022. Alguns cenários já se esboçam em pesquisas recentes, mas ainda vagos e não muito promissores. A população como um todo, e especialmente os mais pobres, precisa urgentemente entender que Bolsonaro é seu grande inimigo. A esquerda precisa por o pé no chão e definir uma candidatura forte imediatamente, ou será (talvez já seja?) novamente tarde demais. A bolha universitária e de classe média precisa parar de perder tempo com picuinhas identitárias a là Big Brother e ser vanguarda na construção de um imaginário democrático e realmente tolerante. Com tudo isso, talvez tenhamos alguma chance de construir um cenário melhor ali na frente. Talvez tenhamos alguma pequena chance.  


Fabrício Maciel é professor de teoria sociológica do departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos, do PPG em Sociologia Política da UENF e bolsista de produtividade do CNPq.

terça-feira, 21 de julho de 2020

AS INVASÕES CIBERNÉTICAS E A DITADURA TECNOLÓGICA

Aldous Huxley e George Orwell haviam profetizado: eles vêm atrás de nós. Chegará um tempo no qual não teremos nenhuma privacidade. Este tempo chegou. Michel Foucault definiu esta realidade como um "panóptico", no qual todos somos vigiados. Na semana passada, eu e um amigo sofremos um ataque virtual, de pessoas mal intencionadas, em uma live sobre meu livro "O Brasil-nação como ideologia" (Rio de Janeiro: Autografia, 2020, 2ª edição). Passados alguns dias, resolvi não ficar calado. Não vou simplesmente aceitar a falta de respeito que sofremos.

O que faço da minha vida? Sou professor universitário. Eu estudo para compreender o mundo. Dedico todo o meu tempo para tentar construir um mundo melhor. Não tenho tempo para vigiar a vida alheia, como fizeram meus invasores. Fico me perguntando sobre a condição existencial destas pessoas. Sabemos o que está acontecendo no mundo e especialmente no Brasil. Está instalado o gabinete do ódio, cuja tarefa diária é construir uma versão totalmente distorcida de mundo e perseguir pessoas ditas de esquerda ou progressistas.

Independente destes rótulos, a proposta do meu livro é pensar o Brasil a partir de uma revisão de sua história. Para isso, precisamos sair das ilusões da conjuntura para compreender como chegamos até aqui. O projeto iluminista deu errado e o mundo está absorto em trevas. O que leva uma pessoa comum a se tornar uma peça descartável neste xadrez, invadindo lives de professores universitários?

Poderíamos culpar a desigualdade e dizer que são vítimas, pessoas sofrendo etc. Mas acho que é um pouco mais do que isso. A maldade humana pode ter a ver com diversas razões. Falta de atitude em querer viver melhor, por exemplo. Mas também pode significar falta de sentido na vida. Até quando vamos aceitar estes ataques, já corriqueiros? Já temos relatos do Brasil inteiro. Não vou deixar de fazer o que sempre fiz, pois este é o sentido da minha vida. Acho que as universidades precisam seriamente se posicionar, institucionalmente. Estamos sendo vítimas de uma guerra doentia montada por pessoas que sabem muito bem o que estão fazendo. Não dá para deixar passar em branco. 

Estamos vivendo sob uma ditadura tecnológica, e o principal problema é que já a naturalizamos. Ela transcende o problema grave do covid, que nos assola profundamente neste momento. Em minha tese de doutorado, publicada como livro sob o título "A nova sociedade mundial do trabalho: para além de centro e periferia?" (São Paulo: Annablume, 2014), estudei as profundas transformações do capitalismo global desde a década de 1970. Um dos aspectos centrais desta discussão é a transformação do capitalismo em uma "sociedade do conhecimento". 

André Gorz, um dos principais autores desta tese, definiu o problema com bastante propriedade: a principal força produtiva e estruturante das sociedades atuais é o conhecimento tecnológico, dominado por poucos. Este é colocado a serviço da elite global para construir uma nova forma de dominação. Sem a tecnologia utilizada pelo poder da classe dominante global não teríamos hoje o novo fenômeno da indignidade: a uberização do trabalho. O patrão é invisível, difícil de se caracterizar como tal e de se processar juridicamente, como temos visto em alguns casos já no Brasil. Cada qual que pague com seu próprio corpo e o covid-19 chega para levar a cabo o trabalho de abandono e matança coletiva. Os entregadores todos os dias na porta de nossas casas estão neste front de batalha, além das mulheres protagonistas de diversas profissões da saúde, expostas ao risco neste momento.

O poder profundo da tecnologia sobre nossas vidas chegou a seu ápice. Hoje somos vítimas de cinco ou seis empresas globais que têm acesso a todos os nossos dados e podem mapear em cinco minuto tudo sobre nossas vidas. Com isso, não são apenas as pessoas "de esquerda" ou "progressistas" que estão expostas. Todos nós estamos. A nova dominação político-tecnológica, que esconde o mercado dos ricos por trás dela, chegou ao limite de poder ilimitado que elege quem quiser. 

Para saber mais, sugiro o documentário "privacidade hackeada" (direção de Jeane Noujaim e Karim Amer, netflix, 2019). Nele é mostrada a ação da empresa Cambridge Analytica e como ela foi decisiva na eleição de Trump e no problema do Brexit na Europa. A mesma lógica foi aplicada na eleição de Jair Bolsonaro. Entretanto, a história possui linhas tortas e este momento pode passar logo. Há grandes chances de que Trump não se reeleja nos Estados Unidos. Ou seja, o sentido que parece estar tomando a história neste momento pode mudar ali na frente e pegar muita gente de surpresa.

Quanto aos soldados da guerra virtual, os generais não morrerão junto com eles. Esta é uma guerra apenas aparentemente coletiva, na qual as principais peças do Xadrez conseguem facilmente mobilizar pessoas com pouca auto-estima para brincar de bater continência a líderes que não estão nem ai para elas. Trágica existência. A leitura de um Olavo de Carvalho pode trazer algum conforto, pois no fundo oferece um reconhecimento fake para aqueles que encontraram pouco sentido na vida. Tudo pode ser relativizado: a cloroquina pode salvar dos efeitos do covid-19 e a terra pode não ser redonda. A única coisa que não se relativiza é a condição de soldado em uma gerra: nunca será reconhecido pelo seu mestre, seja ele quem for. 

Enquanto os soldados fazem o trabalho braçal de invadir lives, colocando sua inteligência gratuitamente em favor de uma guerra particular, de seus mestres, estes nunca se expõem no front de batalha. Estão escondidos em suas mansões provando vinhos e carnes que seus leais soldados jamais provarão. Isso poderia ser uma razão para a reflexão. Talvez ajudasse na busca por um sentido mais profundo na vida.  

domingo, 14 de junho de 2020

NÃO É HORA DE BAIXAR A GUARDA

Estamos em um momento horrível da pandemia e as projeções não são das melhores. A principal reflexão a se fazer agora é que não devemos baixar a guarda, ou seja, naturalizar a rotina e aos poucos procurarmos voltar a uma normalidade que não existe mais. Depois de várias semanas de pandemia, passamos a perceber as coisas de outra forma. Tudo tem seu lado bom, mesmo estes momentos difíceis. Percebi como a luz do sol, nesta época do ano, bate bonita em nosso quarto, como nunca antes. Podemos nos voltar a nós mesmos e tirar tempo para autoavaliações perdidas na velocidade da rotina, como era antes.

Mas o que fazer quando não se pode parar? Neste momento, os moto boys talvez sejam os principais objetos de análise, os mais simbólicos, sobre a realidade que nos assola, diante da qual precisamos nos adaptar a cada semana. Eles não podem parar, como mais da metade da sociedade brasileira não pode. As classes livres do trabalho indigno precisam entender seu privilégio e ficar em casa, sem ampliar o risco da contaminação.

Mas o que fazer quando se é escravo do trabalho indigno? É compreensível a crença na cloroquina e na definição de gripezinha, quando não se tem o tempo suficiente, na dura e indigna rotina, veloz como um moto boy, para se fazer profundas reflexões ou ler longos debates. Também não dá tempo de saber o que é OMS. A realidade fora da bolha das classes privilegiadas muitas vezes é imcompreensível para estas, mas não para as classes de risco.

Não é possível se preocupar com "não baixar a guarda", quando é preciso se resguardar dos males que precedem o coronavirus, que sempre estiveram lá e que não vão mudar com alguma vacina ou com discussões políticas vagas, mas com mudanças políticas de fato e políticas públicas em favor da dignidade das classes populares no Brasil.

As reaberturas, parciais ou não, realizadas Brasil afora neste exato momento, estão totalmente fora da realidade. Agora seria a hora de reforçar o lockdown no país inteiro. Este fato apenas deixa claro o que o capitalismo e a sociedade de risco realmente são: um sistema econômico e social que garante a segurança material e moral de suas classes privilegiadas com base na exposição ao risco permanente, material e moral, de suas classes populares. A realidade dos moto boys na verdade não mudou muito de uns tempos para cá. Apenas surgiu o risco da contaminação, que não precede seu risco existencial desde sempre. 

Não é preciso baixar a guarda: recado para as classes livres da indignidade. Não é possível levar a sério demais um risco sanitário, que não precede a fome, resposta advinda da realidade popular. O que fazer então? Em um plano analítico, não devemos baixar a guarda na busca por uma análise sensata do momento atual, o que não é facil, pois nossas emoções se alteram em uma rotina um tanto quanto imprevisível.

Nosso esforço político para o Brasil do futuro próximo, pós-pandemia ou talvez convivendo com ela mais do que gostaríamos deve formular uma política sistemática de resguardo da dignidade das classes populares. Para tanto, primeiro, é preciso recuperar e resguardar a própria política das patologias e dos virus que a assolam nestes tempos sombrios.

Vivemos agora um fenômeno de desmoralização e deslegitimação sistemática do campo político, portador de todos os holofotes e reduzido ao princípio da corrupção, enquanto o mercado financeiro é quem dá as verdadeiras cartas neste jogo. Precisamos resgatar e resguardar a política deste lamaçal, e o único caminho democraticamente desejável é o institucional. 

Há de se soerguer um candidato progressista no Brasil para a próxima eleição, que tenha mérito e dignidade para receber o voto da maioria dos brasileiros? Desejo que sim. Este, entretanto, precisará compreender alguns princípios básicos da política, ensinados pelo bom e velho Max Weber. 

Não é suficiente que este candidato ou candidata seja um bom moço ou moça. Também não basta ter um bom padrinho político, campeão em transferência de votos, mas que talvez agora não transfira tanto assim. Também não é tudo ser um grande intelectual, que compreenda o Brasil profundamente, ainda que isto possa ser de fundamental ajuda. 

Ainda assim será preciso compreender profundamente o carisma na política. Lula e Bolsonaro, cada qual a seu jeito, conseguiram prometer ao povo mais humilde o que eles mais precisam: eu vou resguardar vocês de todo o risco, alguém aqui é capaz de não baixar a guarda por vocês. 

Quando a política brasileira for resgatada por um novo político carismático, capaz de cumprir seu papel sem se restringir a fantoche do novo capital, teremos dado o primeiro passo para todo o resto: a elaboração sistemática de um projeto de nação que resguardará os seus mais humildes da patologia que precede o coronavirus: o espectro da indignidade. 

Dedico este texto a todas as amigas e amigos que desejem um debate de verdade, não reduzido às emoções e clichês impostos pelas ilusões da conjuntura. 

sábado, 4 de abril de 2020

CORONA VÍRUS, DESIGUALDADE E A SOCIEDADE GLOBAL DE RISCO


O momento atual nos obriga à reflexão. Não temos para onde fugir. O mundo está de joelhos diante de um desafio que não conhece bem e tenta mobilizar todos os esforços possíveis para enfrenta-lo. Precisamos recorrer a todas as ideias possíveis, todas ao nosso alcance, que somos capazes de reproduzir, de modo a enfrentar este grande mal que nos assola. O vírus coloca, em certo sentido, todos nós em pé de igualdade, democratiza o medo, nos deixa sem saída e sem saber bem o que pode acontecer em poucas semanas. As análises políticas muitas vezes são rasas, diante de um problema de natureza tão profunda, ainda que apontem algumas medidas práticas viáveis em curto prazo.

Um dos maiores pensadores da atualidade, o sociólogo alemão Ulrich Beck, desenvolveu nos anos de 1980 sua poderosa tese da sociedade de risco. Ela aponta alguns caminhos muito frutíferos para nossa reflexão neste exato momento. Para ele, a sociedade atual, situada no tempo da modernidade desde a década de 1970, pode ser definida como a “segunda modernidade”. Nesta fase, a principal característica do mundo identificada pelo autor é que a produção de riscos seria nosso grande problema, maior até mesmo do que a produção de desigualdades, tese esta que se tornou polêmica por questionar algumas das bases mais profundas da sociologia predominante em todo o século XX. O significado desta tese é profundo e se mostra agora com a pandemia do corona vírus. Posteriormente, Ulrich Beck desenvolveu e sofisticou sua tese, ampliando-a para a compreensão de que vivemos agora em uma sociedade global de risco, na qual alguns riscos transcendem os limites das sociedades nacionais e até mesmo das desigualdades de classe. Não é outra coisa o que o vírus agora nos ensina. Ninguém está livre do risco e é urgente que levemos este recado bem a sério.

Em seu último livro, “A metamorfose do mundo” (Editora Zahar, 2016), ainda pouco conhecido no Brasil, Ulrich Beck avançou com aspectos essenciais de sua tese. Nele, ele chama a atenção para o fato de que a ciência procura muito mais compreender a distribuição e a não distribuição de bens do que de males. Agora se torna fundamental que compreendamos a distribuição global de males e como ela pode nos afetar de maneira geral, mas também diferencialmente. Assim, Ulrich Beck está consciente de que a distribuição de males, na sociedade global de risco, também é uma forma, talvez a mais profunda, de desigualdade. Com isso, a realidade atual é que temos territórios mais vulneráveis do que outros, nações mais vulneráveis do que outras e, o que deveria ser óbvio, classes sociais mais vulneráveis do que outras.

Os crimes cometidos em Mariana e Brumadinho, chamados metaforicamente de tragédias ou desastres, são uma grande evidência da irresponsabilidade e da loucura que rege agora um novo capitalismo sem nenhum limite institucional e moral, sendo este novo capitalismo a base econômica insana da sociedade global de risco. Estes crimes também são uma prova viva da seletividade territorial e social dos riscos. Várias matérias na grande mídia brasileira, na época, mostraram que a empresa responsável pelo crime em Brumadinho sabia exatamente da dimensão do risco e até quantas pessoas iam morrer, algo que passou batido aos nossos olhos, o dia inteiro ocupados com a novela da política.

Outro aspecto essencial do último livro de Ulrich Beck tem a ver com o poder e com o que ele está definindo como “política da invisibilidade”. Com este conceito, ele procura compreender a nova forma de poder predominante na sociedade global de risco, que para ele se resume ao poder de definição do que é risco hoje. De modo simples, o que o autor quer dizer é que nós desconhecemos, enquanto sociedade global, boa parte dos riscos que nos ameaçam e como eles podem realmente nos afetar. No caso do corona vírus, algumas pesquisas sobre vacinas para seu combate já foram publicadas, mas as previsões para a utilização das mesmas e a superação de fato do problema ainda são tímidas.

Indo além, Ulrich Beck procura definir o que seriam hoje “classe de RISCO” e “CLASSE de risco”. O primeiro conceito procura dar conta da diversidade de riscos que nos assolam, para além da nossa vontade e controle (ambientais, virais, políticos). O segundo conceito procura enfatizar a nova forma como as classes sociais podem hoje ser pensadas, ou seja, como classes de risco. Com isso, precisamos enfrentar dois problemas hoje, no Brasil e no mundo: encontrar as melhores formas de se defender do corona vírus e compreender como ele afeta diferencialmente as classes sociais. O primeiro problema tem sido enfrentado a partir da compreensão de que a vida se torna o bem maior a ser preservado. Deveríamos saber sempre disso, mas parece que só agora, quando o mundo se depara com um risco de características inéditas, somos postos diante do espelho que mostra à humanidade como ela é pequena e limitada. Agora a grandeza se resume em assumir a nossa pequenez e tentar agir a partir dela.

Quanto ao primeiro problema, parte da humanidade parece estar se saindo bem, na medida do possível, mesmo apesar de comportamentos distoantes e de intencionalidade suspeita como o do não-presidente da república do Brasil. As forças de ordem maior tender a predominar nesta hora. Não é a primeira vez que a humanidade se depara com tamanho desafio e é possível que fiquemos bem em breve. Em momento de tamanha dificuldade, inédito em sua história recente, a humanidade pode vislumbrar a expectativa de algo maior logo adiante, quando a ciência parece não oferecer todas as respostas.

Quanto ao segundo problema, que diz respeito à forma diferencial como o vírus afeta neste momento e vai afetar ainda mais as classes sociais, precisamos ter sensibilidade. Como pessoas, esta é uma chance para profunda reflexão e para ação. Neste exato momento, as classes médias e altas podem se dar ao luxo de ficar em casa, fazer sua quarentena de boa, ler um livro, colocar alguns assuntos em dia e até mesmo fazer uma reflexão como esta que aqui se apresenta. Não é a realidade das classes populares, e isso deveria ser óbvio, mas não é. Mais da metade da população brasileira se encontra neste exato momento em uma situação de completa vulnerabilidade, sem a certeza de que terá, nos próximos meses, o mínimo para sua sobrevivência.

A atual discussão da renda básica universal e as medidas de implantação da mesma, que surgem agora, enfrentam parcialmente o problema, mas não essencialmente. Um real enfrentamento precisaria repensar as bases profundas de reprodução do capitalismo, como uma ordem global incontornável que nunca produziu justiça social. A quantidade de evidências sobre este fato já é mais do que suficiente, já basta. Quando o Welfare State fracassou nos Estados Unidos e na Europa ficou claro que o capitalismo é um sistema que jamais produzirá justiça social por si mesmo. O verdadeiro enfrentamento da desigualdade, para além da renda básica universal, o que pode ser por si mesmo um bom início, deveria incluir a taxação das grandes riquezas e uma sensibilização por parte das elites na condução do mercado.

Quem está por trás das ações patéticas do não-presidente da república? Como é possível não se sensibilizar com pelo menos metade da população vivendo abaixo de qualquer linha imaginável de dignidade? São questões que exigem respostas de imediato, e o corona vírus aprofunda tais questões. Algumas ações de ajuda social e boa vontade já são vistas emanando da própria sociedade, que apresenta com isso seu lado mais sensível e solidário. São ações louváveis, mas não suficientes. O sistema político e as elites econômicas precisam reagir de maneira sensível e responsável, levar a sério o slogam que sempre evocaram para si, o de conduzir os rumos da humanidade. É muito fácil para a classe empresarial arrogar para si a condição de condutora da sociedade, como tem surgido em pesquisa atual que estou realizando com executivos, ao dizer que gera empregos.

Agora, como nunca antes, a questão não é gerar e manter empregos ou obrigar as pessoas a trabalhar. A questão é como enfrentar o problema da desigualdade, sempre existente, com sua intensificação pelo corona vírus, neste exato momento. Um caminho seria uma atitude mais consciente e sensível por parte da classe empresarial, em todos os níveis, mas principalmente nos andares de cima. Um dos pilares da reforma trabalhista foi exatamente deixar nas mãos “das partes”, empregadores e empregados, a possibilidade legal de negociar o que fazer sobre salários e tempo de trabalho. Vamos ser sensíveis neste momento e aliviar para o lado do trabalhador, adotando medidas de tolerância e de proteção social nos próximos meses, sem simplesmente colocar isso na conta do Estado? Isso seria ser “responsável” pela sociedade, ou seja, que a elite usasse os recursos que tem para proteger os vulneráveis. Mas não é o caso. Presenciamos exatamente o contrário. Vamos mexer no caixa da empresa, como se fosse um investimento, e pensar em um salário para proteger o trabalhador nos próximos meses, ou seja, fazer um investimento no próprio capital humano que será necessário ali na frente? Não, longe disso, vamos por na conta do Estado. Nesta hora predominam o medo e a pequenez humana.

Esta atitude idealista não vai acontecer por que o capitalismo global, há 40 anos, vem construindo uma economia política de “generalização da precariedade”. No plano da vida moral, trata-se de um processo de “institucionalização da indignidade” das condições de trabalho e das relações entre as classes. O fato de não ter um trabalho e de não poder trabalhar, o que se complexifica com o corona vírus, é por si mesmo indigno, ameaçando a capacidade de milhões de pessoas de proverem por si mesmas, para si e suas famílias, o mínimo para sua dignidade. Como dignidade das classes populares, compreendo a possibilidade de ter o mínimo para preservar a vida material e a vida moral. Por outro lado, as elites e as classes médias não podem ser dignas se não agem efetivamente para combater a indignidade dos mais carentes. Recursos financeiros para o enfrentamento do problema existem, precisariam ser utilizados com um pouco mais de humanidade. Um pouquinho mais já seria um bom começo.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O QUE É O ANTI-PETISMO?



Estamos em pleno segundo turno, e as expectativas não são das melhores. A grande massa da população, e especialmente as classes populares, está totalmente imersa no mundo das fake News. A classe média, isolada em sua própria bolha de relações sociais, bem como no Facebook, não tem ideia do que está acontecendo. O principal fato que precisamos compreender, se ainda quisermos ter alguma esperança sobre um Brasil melhor, é a construção do anti-petismo.

Este sentimento que domina avassaladoramente a grande maioria da população brasileira não é simplesmente uma crítica ao PT. Eu não sou nem nunca fui filiado ao PT, logo não tenho interesse direto em sua defesa. Meu partido sempre foi e sempre será a sociologia crítica de qualidade. É em nome dessa que tento escrever. O sentimento anti-petista é, sobretudo, contra o Brasil e principalmente contra os mais pobres. É uma construção que deve ser posta em grande medida na conta da Rede Globo, mas não apenas. Desde a farsa do mensalão, que atribuiu ao PT toda a corrupção intrínseca a todo o capitalismo é que a Globo, refletindo a opinião e a vontade de boa parte de nossa elite, vem construindo sistematicamente o anti-petismo anti-brasileiro. Todo mundo sabe que outros políticos, com motivos muito mais evidentes, deveriam estar na condição que Lula se encontra neste exato momento.  

Depois veio o Golpe etc etc. Não precisamos ser repetitivos aqui. O fato é que hoje Bolsonaro nada de braçadas nesta construção ignorante que vai jogar o Brasil no abismo. Não, não foram simplesmente erros do PT que nos jogaram nisso etc etc. A conversa é bem mais complexa do que a discussão conjuntural sobre partidos, que infelizmente tomou boa parte de nossas forças, nos dividindo entre a candidatura do PT, único partido com capital político suficiente para enfrentar Bolsonaro, e a candidatura de Ciro Gomes, que de repente vira “esquerda”, como se tivesse um grande projeto nacional, como se isso fosse totalmente novo etc etc. Inclusive, espero que agora fique claro quem é esse moço, tirando férias na Europa enquanto o circo pega fogo. Grande ato de patriotismo. Postura semelhante à de FHC e de muitos outros que, posando de centrão, surfando na onda de não participar dos extremos, construídos pela Globo, Veja, Isto É etc, não querem se comprometer com o que está prestes a acontecer e automaticamente abrem mão do Brasil.

O resultado de tudo isso é catastrófico. Bolsonaro é o único político carismático que surge no Brasil depois de Lula, que seria o único capaz de enfrenta-lo. Não, a culpa não é novamente do PT etc etc etc. O que está em jogo não é a autocrítica que o PT deveria fazer, mesmo por que ela agora está sendo feita estrategicamente por Haddad. O buraco é bem mais embaixo. Bolsonaro mobiliza com maestria a moralidade do povo brasileiro da maneira mais maldosa possível. Ele apela para a questão da violência exatamente por que nosso povo está acuado, com medo, sofrendo as mazelas da generalização da precariedade do capitalismo contemporâneo, que afeta principalmente os países periféricos. Eu mesmo já fiz uma análise acadêmica deste tema. A questão da violência, distorcida e minimizada, substitui a questão do enfrentamento da desigualdade, esta que foi a chave moral com a qual Lula conseguiu conversar com a população. Nos dois casos, o contexto global favorece a construção de uma linguagem política nacional. Nós trocamos Obama e Lula por Trump e, espero estar errado, Jair Bolsonaro. É trágico. Faltam forças para continuar escrevendo. Mas precisamos retomar o fôlego e tentar compreender o que está acontecendo.

Todo contexto político necessita de narrativas. A única narrativa política que se construiu no Brasil desde que Lula foi eleito é o anti-petismo. Me apresente outra se alguém a tiver. A tese de que a culpa é do próprio PT é muito frágil. Inclusive, acho triste que colegas inteligentes se apeguem a esta tese. Todo partido ou grupo político comete erros, revê estratégias, precisa compor com um bando de crápulas sangue sugas sem os quais se não se governa em nenhuma democracia moderna. A ciência política tem um nome para isso e se chama “governabilidade”. Basta estudar um pouquinho para entender. Diante da colcha de retalhos que é o cenário político de um país gigantesco como o Brasil, com interesses locais diversos, com investimentos do capital financeiro mandando até o fundo de nossas almas, considero muita tosqueira intelectual por a culpa em um partido e nos seus erros. Não, é preciso compreender a estrutura da política brasileira, sua relação com a estrutura social de nossa desigualdade, bem como o entrelaçamento sistêmico entre tais estruturas e o capitalismo financeiro globalizado. Não, não é tudo culpa do PT.

Diante disso tudo, é preciso compreender o sentido profundo do anti-petismo. Ele é um monólogo, uma narrativa única. Ele nos tirou todo o direito de fala, nos podou do debate, se aproveitou de toda a nossa fragilidade social, que se resume em um apartheid de classe. Não convivemos juntos enquanto classes sociais. Não dialogamos. Sequer temos noção de como os mais pobres estão oprimidos. Observei as pessoas na fila quando fui votar e a constatação é simples: elas não aguentam mais. A precariedade no Brasil é tanta que uma grande parte da população passa fome, é subnutrida, e outra grande parte está bem próxima disso. Este é o Brasil pós Lula e pós PT. Ao mesmo tempo, a ciência social resumiu o debate ao sistema político e à sua lógica intrínseca. Está errado. Simplesmente esquecemos a sociedade. É dela que emana toda a angústia manipulada por Bolsonaro.

Esta parte me dá uma tristeza profunda. Está claro que os mais oprimidos e enganados vão pagar esta conta, e vão pagar muito caro. Até o problema chegar na classe média, preocupada se vamos perder nossos concursos etc, nós já moemos milhões de pessoas, na máquina do capitalismo, como dizia Darcy Ribeiro. Sim, é uma maquina de moer gente o sistema no qual vivemos, e figuras como Trump e Bolsonaro apertam o botão “turbo” desta máquina, simples assim. Não há tempo para ilusões. As declarações nacionalistas do capitão apenas omitem seu entreguismo. A maldade de sua manipulação moral de nosso povo mais oprimido é tanta que mobiliza aquilo que mais toca nas pessoas. Primeiro, a questão da segurança, depois a da família. Aqui também precisamos parar e fazer uma análise.
A linguagem pós-materialista, defensora dos direitos humanos, da liberdade sexual, da tolerância racial e religiosa, tão importante para o avanço moral do mundo, não diz absolutamente nada a grande massa das classes populares. E não, não é por que as pessoas são burras. É por um fato muito simples. Estas pessoas ainda estão imersas em suas preocupações materiais mais imediatas. Dai o fato de a linguagem do combate a violência e do fortalecimento da família estabelecer um elo inquebrantável entre o capitão e o povo. Sim, ele sabe muito bem o que está fazendo. E nós, intelectuais, classe média, etc, ficamos dando com os burros n’água, perdendo tempo decidindo entre PT e Ciro. Quem continua incomodando é o PT. Do contrário, não existiria o monólogo da narrativa anti-petista. Sim, é a única linguagem, a do capitão, que agora adestra com maestria seu exército. A lógica do exército é obedecer, burocraticamente, sem questionamento, roboticamente, sem reflexão, como no filme Tropa de Elite. É ir pra guerra e confiar em seu capitão. A metáfora não poderia ser melhor e pena que não é só metáfora, é a vida real da maioria da população brasileira que, neste exato momento, cegamente, obedientemente, como um bom exército, confia em seu capitão e em suas táticas. O capitão Nascimento, aquele da ficção, que foi estimulado em todos nós pelo pseudo crítico filme Tropa de Elite, agora é real, saiu das telinhas, deixou de ser brincadeira. Sim, nunca foi brincadeira. Não se brinca com o sentimento das pessoas. Aliás, se brinca sim, e o capitão sabe fazer isso muito bem. Como na guerra, todo mundo sabe que os soldados morrem primeiro, põem seus corpos no front de batalha para proteger o capitão, que monta suas táticas e vai muito bem, obrigado.

Entretanto, uma diferença crucial entre a metáfora do exército e a situação atual do povo brasileiro é que, de alguma forma, o soldado na guerra é motivado por valores e sabe que pode morrer. Nosso povo está acreditando no contrário. Infelizmente, países de modernidade periférica e profunda desigualdade estrutural como o Brasil tendem a possuir um imaginário salvacionista em relação aos seus políticos. Dai a raiva de Lula e o descrédito com ele, a decepção, por achar que o presidente resolveria todos os problemas do mundo. Não, isso não é real. Um presidente e seu partido, por mais de esquerda que seja, faz o que pode diante de forças antagônicas que regem a sociedade, seus recursos materiais e simbólicos. Não, nem o bem-intencionado Boulos salvaria o Brasil com uma penada, por que isso não é real. É um mundo de fábulas. O mundo da vida real é regido por forças em conflito, interesses distintos, e precisa lidar com eles. É exatamente o que um candidato moderado poderia fazer neste exato momento, se o povo não estivesse mais uma vez iludido com o nosso imaginário salvacionista, maldosamente mobilizado pelo capitão. Não por acaso, as soluções dele são como um passe de mágica. Um presidente de pulso forte vai combater o crime. Como o capitão Nascimento, como a tropa de elite. Mas não, na política não é assim. Como muito bem definiu o grande Michel Foucault, a política é a guerra por outros meios. Logo, é preciso diálogo, manejo, reflexão, trânsito entre os vários grupos políticos, ou seja, o que um candidato moderado poderia fazer.

Mas seria pedir demais ao nosso povo para fazer esta reflexão. O povo perdeu a paciência, e com toda a razão. Também seria um grande equívoco culpar o povo por isso. Não, não é assim, e existe sim um culpado. A situação tem que ser posta na conta da elite nacional, insensível, entreguista, antipatriota. E também em grande medida na conta da parte da classe média bate-panela, que, depois do povo, também vai pagar, aliás, de forma sadomasoquista já vem pagando desde o golpe, que poupou apenas a elite.
Não, isto não é senso comum do sociólogo chateado em seu desabafo. Não me apego ao fetiche de teorias mega abstratas, tanto na economia quanto na sociologia. Me apego aos autores que conseguiram me explicar com clareza o mundo no qual vivo, como tento agora fazer neste texto. Dentre eles, o que mais me ensinou nos últimos anos foi o norte-americano Wright Mills. Este grande pensador dedicou um de seus grandes livros ao que definiu como a elite do poder. Em resumo, ele percebeu, já nos Estados Unidos dos anos de 1950, que a elite são aquelas pessoas que ocupam os principais postos nas principais instituições do Estado, do mercado e, especialmente naquele momento, do exército. Atualizando para o Brasil, precisamos incluir aqui a mídia e o campo jurídico. Por ocuparem tais posições privilegiada de poder, estas pessoas tomam decisões que afetam todo o restante da população. Como não tem limites em sua ação, se tornam pessoas mimadas, narcísicas, sem caráter, salvo raras exceções que não se contaminam pela moralidade ou melhor, pela imoralidade corrupta das altas rodas, como explicou Wright Mills, que naturalizam o sistema, como fica claro em falas de vários empresários enjaulados pela farsa da lava-jato. Não, não se trata apenas de um partido. Uma leitura atenta do grande Wright Mills, que eu não teria espaço para reproduzir aqui, deixa claro que não se trata de Brasil ou América Latina, mas sim da natureza moderna de qualquer elite capitalista. Não, não é senso comum, é a análise de um dos maiores sociólogos que o mundo já teve.

Por fim, uma palavra de alento. Ainda não acabou, e temos alguma chance de virar este jogo. É preciso diálogo com tolerância, sem agressões. Nenhum vínculo afetivo, família ou amizade, deveria se esfacelar com o canto da sereia do capitão. É preciso que conversemos com as pessoas, principalmente as indecisas, sobre o projeto econômico obscuro do capitão. Não se trata apenas dos direitos das relações homoafetivas, negros, mulheres e etc. O buraco é mais embaixo. O capitão não gosta da classe trabalhadora. Como no Titanic, conduz o navio para a tragédia, contendo a bordo apenas um bote salva vidas para a elite, enquanto a maioria dos tripulantes segue inebriada com a música de fundo. O projeto obscuro, escondido pelo apelo cruel aos sentimentos mais profundos do brasileiro envolve um aprofundamento do governo Temer, a não reversão da reforma trabalhista, que deixa o trabalhador totalmente vulnerável diante do patrão, uma reforma da previdência que não beneficiará os trabalhadores, o aumento de facilidades para os grandes grupos empresariais e também as privatizações, ainda que ele ande confundindo a população quanto a este ponto.

Se a história tomar mesmo o rumo que parece estar tomando, só nos restará a resistência, inteligente, com música e poesia. Sim, muita poesia, arte, amor e sensibilidade que parece ser o que está faltando neste mundo. Mas também com atitudes políticas inteligentes, resistência tática, movimentos sociais que não joguem a toalha diante de um mal maior que parece nos afligir. A reação terá que vir do espírito, de dentro, do fundo da alma. A história, esta nossa grande incógnita, parece nos enganar as vezes, mas ela mesma apresenta uma luz no fim do túnel. Não dá pra achar que as forças progressistas ganharão sempre. Mas também não podemos titubear e entregar-nos ao mal, sem resistência. Muita força nesta hora, é o que desejo a todas as brasileiras e brasileiros. No fim, só resta o pensamento livre. Haddad haver uma alternativa, para não Jair nos acostumando com o que há de pior.





sexta-feira, 13 de abril de 2018

O MECANISMO DE DISTORÇÃO DA VERDADE NO BRASIL


A série “O mecanismo”, de José Padilha, que está bombando na Netflix, é um perfeito exemplo de como se distorce sistematicamente a verdade sobre o Brasil, tanto na academia quanto na arte, operando-se uma perfeita divisão do trabalho. Vou reconstruir um breve histórico deste conhecido cineasta, para que possamos entender o que esta série realmente representa.
Desde o seu documentário “Ônibus 174” (2002), sobre o conhecido episódio envolvendo o garoto de rua protagonista da tragédia, que Padilha não me convence. Quem quiser ter acesso a uma análise realmente crítica deste episódio pode assistir ao filme “Última parada 174” (2008), de Bruno Barreto que, apesar de ser uma ficção, e não um documentário, como fez Padilha, tematiza de fato o que aconteceu na história de vida do menino Sandro. Primeira lição a se aprender: nem sempre um documentário é crítico.
Neste belíssimo filme, Bruno Barreto deixa claro, com fineza sociológica rara, as razões que levaram o menino Sandro a se tornar um adulto tolo e protagonizar a tragédia do referido ônibus. Não recontarei a história, pois é bem conhecida. A análise do filme, baseado em fatos reais, mostra com clareza a história de vida do menino: sua mãe, uma batalhadora dona de um bar na comunidade em que moravam, é assassinada brutalmente durante um assalto em sua presença. O menino começa a vagar, não pára na casa de nenhum parente e, sem destino, enlouquece e vai morar nas ruas do Rio de Janeiro. Paralelamente, o filme mostra a vida de um outro menino Sandro, da mesma idade que, criado por um traficante, desenvolve todas as disposições e a inteligência necessária para o crime. Contrário a ele, o Sandro do ônibus se torna um garoto de rua que é essencialmente um tolo. Esta é a moral da história: um garoto de rua não tem metade da sagacidade de um traficante, e o seu destino é ficar vagando e cometendo pequenos delitos no centro da cidade. Ou seja: o garoto de rua é um exemplo perfeito do que o abandono social pode causar a uma pessoa. Quando esta pessoa comete algum delito que afeta a “boa sociedade”, logo ficamos apavorados.
Moral da história: é assim que se usa a arte para se tematizar criticamente as razões dos problemas sociais. É preciso que se mostre claramente, sem ambiguidades e floreios, a origem real dos problemas, como faz o filme. É preciso que se tenha uma didática clara e direta para o público. Esta certamente não é a marca de Padilha. Já no primeiro “Tropa de Elite”, baseado em livro de relatos escrito por Luiz Eduardo Soares e parceiros, ele deixa ainda mais claro a que veio. A trama do filme é simples: apenas uma tropa muito bem treinada para uma guerra, com razões morais que motivam seus membros a darem sua vida pela causa, pode enfrentar o crime no Brasil. A velha tese acadêmica de que a desigualdade no Brasil é uma questão de polícia não podia ser melhor requentada e apresentada ao público como distração.
Em resumo, a questão central do filme, reforçada por sua estética, é que uma tropa de homens bons e honestos vai enfrentar o crime para salvar a boa sociedade. O sentimento mobilizado pela estética do filme é a vontade de ver o crime exterminado a qualquer custo. Por isso não é crítico. A arte tem o poder de mobilizar imediatamente os corações das pessoas. Por isso, deve ir direto ao ponto. Em nenhum momento o filme questiona o fato central de nossa desigualdade, que tem a ver diretamente com a violência no Brasil: o fato de que homens moralmente desqualificados e excluídos de outras possibilidades de trabalho distinto vão encontrar no batalhão sua única chance de receber algum prestígio e status. Para tanto, o preço é matar muitas vezes um primo ou irmão, do outro lado do front da batalha (há relatos verídicos sobre isso), para com isso defender a classe média e a elite da violência mais imediata do cotidiano.
Novamente, fica a sugestão: para quem quiser ver um filme realmente crítico sobre o drama da guerra e de como ela destrói a alma dos envolvidos, basta ver o belíssimo “Nascido para matar” de Stanley Kubrik. Este sim, tematiza como o treinamento indigno, apenas caricaturado no Tropa de elite que “mostra”, mas não “analisa”, mobiliza os sentimentos e valores dos envolvidos. No filme, um dos soldados, que não tinha preparo físico e emocional para o treinamento, como muitos não tem, acaba se apaixonando pela própria arma, e no final aniquila seu treinador, que era seu algoz.
No Tropa de Elite 2, nosso querido cineasta vai ainda mais longe. Como o próprio sub-título do filme sugere, “O inimigo agora é outro”. O já consagrado herói nacional, Capitão Nascimento, agora “cai para cima” e vai trabalhar na inteligência do combate ao crime. Descobre logo de cara o “sistema”. Moral da história: a polícia deve combater a política. Uma análise que fiz na época sobre o Tropa 2 pode ser lida aqui: http://eduem.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/11629/6704.
Mais uma vez, o filme tem uma onda crítica. Aqui não podemos confundir o uso dos fatos com a capacidade crítica da arte, pois é exatamente o que ocorre agora no “Mecanismo”. Não por acaso, o Tropa 2 é lançado em pleno início de segundo turno das eleições para presidência, em 2010, na qual Dilma venceu Serra. Um dado ingênuo: a última cena do Tropa 2 é uma imagem sobrevoando o palácio do planalto. O tema do filme, adivinhem: combate a corrupção, que neste caso é só no Estado.
Por fim, temos agora o “Tropa de Elite 3”, pois não se trata de outra coisa esta série “O Mecanismo”. O inimigo continua o mesmo: a política em si e todos os políticos, pois todos são corruptos. Este é o discurso adotado pelo diretor. Não por acaso, a série se atualiza em alguns aspectos: agora o problema do Brasil é mais complexo e apenas a casta jurídica, isenta, pode enfrentar a corrupção, “nosso câncer”, como é enfatizado na série. A estética é a mesma: o combate ao crime organizado, de colarinho branco. A polícia, mais inteligente, preparada, séria e isenta: a federal. Temos alguma esperança: algumas pessoas de bem ainda acreditam na guerra contra os criminosos. Falta apenas falar de um detalhe nesta história toda: a política corrupta é apenas a ponta do iceberg de um “sistema” um pouquinho maior...Só não posso garantir ao leitor que uma série realmente crítica sobre ele passará na Netflix.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

BRASIL, 2018: O QUE FAZER?


Faz tempo que venho pensando em escrever um texto sobre a situação brasileira atual. Tenho me perguntado o que há realmente de novo na novela que temos presenciado. Somos bombardeados cotidianamente por uma quantidade de informações, verdadeiras e falsas, que mal damos conta de ler. Estamos acelerados, como muito bem analisou o sociólogo alemão Hartmut Rosa. A dinâmica do Whats App, nos sufoca todos os dias com uma série de informações que mal damos conta de absorver. Desnecessário dizer que, assim como muitos de nós, já abandonei a leitura de alguns canais da mídia oficial faz tempo. Desde o episódio inicial da novela envolvendo Joesley Batista e Michel Temer, tomei um nojo profundo e irreversível do jornal o Globo. Dizer isso não é muita novidade, mas pelo menos me permite compartilhar um sentimento que tenho certeza ser de muitos.

Tudo isso é um sintoma de que devemos ser cada vez mais seletivos. Existe hoje uma meia dúzia de revistas e blogs de esquerda que ainda merecem ser lidos. Articulado a isso, devemos ter cautela com uma distorção sistemática da realidade que se opera neste exato momento de forma muito sutil. Alguns escritos da escola de Frankfurt sobre a indústria cultural nos ensinam a compreender como este mecanismo funciona. A mídia oficial trata de todos os temas importantes da realidade de forma pseudo-crítica. Ela cria uma estética banalizante, grotesca e caricatural das questões que realmente importam. Seus executivos não dormem. Isso não é especificidade do Brasil. A bela análise de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural e a sociedade de massas estão em consonância com a análise de Wright Mills, em seu grandioso livro “A elite do poder”, escrito nos anos 50.

Nesta obra magnífica, esquecida entre nós, Mills também analisa, brilhantemente, o fenômeno da sociedade de massas, sem o qual não se compreende o poder ilimitado alcançado pela elite no capitalismo americano, símbolo do que viria a ser o paradigma da realidade capitalista em todo o mundo pós-segunda guerra mundial. Para ele, o poder, o prestígio e o status ilimitado da elite americana, que naquele momento se encontra ocupando os mais altos postos institucionais do Estado, do mercado e da esfera militar, algo de dimensões inéditas na história, só se explica pela desconexão total entre a vida isolada desta elite e a vida comum das classes populares. Esta desconexão completa entre dois mundos sociais totalmente distintos, ou seja, a realidade das “altas rodas” das elites, escondidas em seus restritos milieus sociais, e a vida comum da massa, possui para o autor uma série de razões. A classe média, enquanto isso, vive no meio destes dois mundos, horrorizada pela possibilidade de ficar presa na parte de baixo desta sociedade do tipo “Titanic social”, ao mesmo tempo em que sofre sistematicamente o desprezo da elite, que nunca a aceita em seus círculos restritos. A análise desta tragédia existencial da classe média foi magistralmente analisada por Mills em seu livro anterior, não menos instigante, o White Collar (em português, “A nova classe média”), no qual percebe a ambivalência sociológica e psicológica (como diria Robert Merton) de uma classe média que emerge principalmente pela instrução formal.

O nó da questão, para Mills, nestes seus dois grandes livros, não é meramente descrever o fato empírico do surgimento de uma nova estratificação social nos Estados Unidos. O que está em jogo aqui é o surgimento de uma nova sociedade que possui uma cultura específica, resumida nos termos do autor como sendo forjada a partir de uma “psicologia social das elites”. Para ele, as elites não possuem apenas interesses políticos e econômicos em comum, mas também, e isso parece o mais importante de tudo, uma afinidade afetiva e psicológica. Este tema, inclusive, preocupou todos os grandes sociólogos e escolas sociológicas da geração de Mills. Basta dar uma olhada rápida nas principais obras e autores das Escolas de Frankfurt e Chicago, bem como do funcionalismo estrutural. Apenas Mills, entretanto, colocou o tema em termos claros e incisivos em relação às classes sociais. A grande sacada do autor, nesta direção, foi perceber que a unidade afetiva das elites faz com que seus membros se percebam e atuem como parceiros impessoais na tarefa, auto-atribuída, de dominação e condução do mundo. Não é outra coisa que se confirma, por exemplo, lendo a biografia de um Marcelo Odebrecht.

A principal lição que extraímos destes dois livros de Mills é a seguinte: a cultura capitalista construiu a sua própria narrativa de mundo, prometendo a todas as pessoas um horizonte e um destino a se perseguir. O fio condutor dos dois livros é que a busca incessante, vazia existencialmente e insana por poder, prestígio e status se constitui como a grande meta moral da vida capitalista, incorporada e exemplificada principalmente por suas elites e imitada de perto pela classe média. Um aspecto decisivo desta análise se encontra no fato de que o mundo das celebridades, ao qual Mills dedica um dos capítulos mais impressionantes de seu “Elite do poder”, exerce a função sistemática na mídia de parecer ser o mundo dos ricos, enquanto o verdadeiro mundo destes, no qual todas as decisões que influenciam na vida de milhões de pessoas são tomadas, nunca é apresentado de fato ao grande público. Qualquer semelhança com a rede Globo e com a estética da Netflix, mundialmente difundida, não é mera coincidência.

Por fim, Wright Mills encerra este grandioso livro com uma análise da “alta imoralidade” que corrompe todos os círculos das altas rodas, nos conduzindo a uma leitura sobre os Estados Unidos dos anos 50 que mais parece o Brasil em 2018. Nesta, deixa claro que a corrupção não é peculiaridade da cultura dos países latino-americanos, mas sim um traço inerente de toda a cultura capitalista, a começar pelos Estados Unidos, que naquele momento se apresenta como vanguarda desta cultura universal. A alta imoralidade das elites, neste sentido, significa a predominância de um espírito iletrado e a dominação de homens cuja motivação única é a busca pelo poder e pelo dinheiro. Qualquer semelhança com o Brasil atual não é mera coincidência, nem especificidade nossa.

No Brasil, Jessé Souza vem realizando com muita propriedade uma análise semelhante, tanto sobre a imoralidade de nossas elites quanto sobre a submissão interesseira da classe média, articulada à primeira, considerando, entretanto, as especificidades do Brasil atual, diante deste cenário maior da cultura capitalista. Não por acaso, seu atual livro “A elite do atraso” já é um best-seller, por razões evidentes. Neste, Souza identifica com maestria a origem de nossa elite de rapina na cultura da escravidão, aquela mesma que Joaquim Nabuco em seu tempo descreveu como a principal marca da alma brasileira, antecipando várias teses de Gilberto Freyre, cinquenta anos antes da publicação de Casa Grande & Senzala. Desde seu premiado livro anterior, “A radiografia do golpe”, Souza tem mostrado com precisão como um grande acordo de nossas elites, incluindo o mercado, o Estado a mídia e o judiciário deu o tom para a constituição da crise brasileira atual, posta na conta do PT. Em seu livro atual, ele vai além e procura mostrar como a nossa elite do atraso possui uma lógica própria pelo menos desde a década de 30, tendo como traço comum o fato de sempre conseguir elaborar um grande acordo, incluindo a classe média comprada e submissa, contra as classes populares, mantendo em poucas mãos o domínio das instituições e de todos os recursos materiais e simbólicos necessários para a manutenção intacta de nossa desigualdade. Qualquer semelhança com o cenário norte-americano descrito por Wright Mills nos anos 50 não é, infelizmente, mera coincidência.

Diante disso, o que esperar do Brasil em 2018? Escrevo este texto antes do julgamento de Lula, marcado para o final de janeiro, provavelmente o capítulo final de nossa “House of cards” tupiniquim. Se ele será condenado ou não, em certo sentido, não faz diferença para esta reflexão. O legado de esquerda representado por ele, apesar de todas as críticas positivas que sempre recebeu e a despeito de todas as críticas negativas e desnecessárias, precisa sobreviver, independente do amor ou ódio que tenhamos à sua figura. Não é o Lula quem realmente precisa vencer as eleições, o que não significa que eu não deseje isso, mas sim o legado de esquerda que por muito tempo ele representou. Assim como muita gente sensata, não desejo sua condenação por razões que têm sido exaustivamente discutidas entre nós. Sabemos que não é justa. Sabemos que é fruto da loucura das elites descrita por Mills. Sabemos que é fruto do poder ilimitado adquirido por elas, não apenas no Brasil, mas em todo o capitalismo. Sabemos que uma elite internacional, dona do capital financeiro, ainda mais aperfeiçoada em seus mecanismos de dominação do que aquela que Wright Mills viu em vida, dita hoje o tom das coisas dentro da política nacional. Mas o que está em jogo aqui não é apenas saber das coisas. Está em jogo algo mais importante, que é a manutenção de um sentimento de esquerda. Tornou-se muito comum entre nós hoje a crítica interna a esquerda, nem sempre bem intencionada. Não basta dizer onde erramos. É preciso coragem para pensar, se posicionar com respeito a opiniões alheias e simplesmente se assumir como de esquerda.

Não estou pensando aqui simplesmente na unificação de partidos. Caso Lula não concorra, algum candidato terá que herdar o seu lugar, de seu partido ou não, mas não deverá fazer isso sozinho. Deverá representar, ao lado de milhões de pessoas de esquerda, muitas delas sendo aquelas que foram às ruas desde 2013, um verdadeiro espírito de esquerda. É este que poderá manter acesa a chama da esperança para a retomada da reconstrução de nosso Estado democrático de direito e de bem-estar social. Para grandes teóricos como T. Marshall e Robert Castel, em momentos distintos da história, este foi o único caminho para a construção de sociedades igualitárias, com exceção de experiências diretamente socialistas como a de Cuba, um país pequeno, cuja história e complexidade não se podem comparar com a brasileira.

O espírito de esquerda, assim, independente do vulto de pessoas que formalmente o representam, precisa prevalecer ao desespero e à adesão afetiva à triste figura de Bolsonaro. Mais uma vez, não se trata de especificidade brasileira. Os teóricos da primeira geração da escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, já se preocupavam com a “personalidade autoritária”, cuja adesão, ao mesmo tempo afetiva, “psicológica” e “racional”, interesseira, como brilhantemente explica adorno em um pequeno texto chamado “Observações sobre política e neurose”, não explica apenas a adesão a Hitler, mas também a Donald Trump nos dias de hoje e a muitos outros na história. No Brasil, o machismo e a memória militarista são apenas um tempero maligno neste tipo de “psicologia social das massas”, que expressa muito mais uma impaciência política e uma ausência de reflexão do que a sustentação de um projeto de nação para todos.


Se o espírito de esquerda vai prevalecer, não sabemos. O fato é que este ano promete. A melhor postura, diante de tudo, talvez seja a busca ainda mais profunda pela reflexão, pela tolerância, pelo respeito e pelo convívio afetuoso. Sim, estas são virtudes necessárias na esfera pública e na política. Inclusive, elas podem ser bons temperos na construção de um espírito de esquerda. Uma boa consequência disso pode ser uma decisão serena nas urnas. Que assim  seja!